Categorias
Dor

Eu quero chorar todas as lágrimas

Eu quero chorar todas as lágrimas

As lágrimas que não derramei pela minha mãe
As lágrimas que não derramei pelo meu irmão
As lágrimas que não derramei pelo meu pai
As lágrimas que não derramei por meus tios e tias

Pelos meus avós
Pelos meus amigos que se foram,
Tanto os mortos quanto os que vivem,
Tanto os meus como os de outrem

Todas as lágrimas que o mundo proporcionou
Todas as lágrimas que o acaso entregou

Toda ausência de carinho, de sentido, de fé, de medo, de fragilidade, de devoção

Chorar toda a ingratidão do céu cansado de nós
Chorar toda a solidão da terra abandonada ao algoz

Que somos nós…

As lágrimas são infindáveis
E são uma benção

Rasgam a minha alma endurecida
Lavam o meu rosto embrutecido
Vincado e deformado pela falta de um sorriso.

E a lágrima é a irmã do sorriso

Quando ela mergulha no meu espírito
Quando ela debulha o meu sigilo

Ela faz brotar vindo do meu ventre esse último sorriso
Esse que me diz que vivo

Que o humano em mim deseja
Quer proximidade
Quer perdão pelo que não é culpável

Essa lágrima, esse sorriso,
São um só!

E provam que há vida e que além
Muito além de qualquer perspectiva

Ela resiste

Resiste por não querer mais resistir
Mas se entregar

À todas as lágrimas que caem desse céu escurecido
Sorrindo na redenção recostada no regaço de todo desconhecido

Categorias
Dor

A importância medida na carne

A importância medida na carne
Não pode ser esquecida na dor que arde
O álcool atirado sobre a ferida exposta
Fará toda lembrança viva e a mostra
E esterilizada a chaga uma vez adquirida
Revelará dor maior que a chaga antiga
Essa chaga feita nas nuas costas
Pelo látego das vãs frívolas apostas
De amar-se dilacerado no fogo que arde
Trinchando-se na importância da carne

Categorias
Dor

No sonho daqueles que nos perderam

No sonho daqueles que nos perderam
Somos a nódoa da sombra
Que embranquece a luz.
E inerentes à coloração dos mortos nos fizeram,
Perdidos sob a relva,
À sustentar uma cruz.

E nos deram motivos para chorar à noite.
E nos deram lembranças e carinhos de açoite.
E nos fizeram voltar ao chão.

E singramos como os vermes
As paragens do húmus
Enquanto a mente estéril concerne
Os erros que ergueram nossos túmulos.

E as lembranças de quando éramos vivos
Nos escorrem da boca feito néctar sangüíneo.
Cavando túneis onde não chega o som dos sinos
O lembrar se transforma num caminho retilíneo.

E do transformar da sombra em sombra
É que se ergue a nossa mágoa.
Pois em pensamentos dividimos águas
Mas em toda fútil fúria nossa alma se assoma.

Pois ninguém nos rasga a carne na cama.
Pois ninguém nos compra a alma de lama.
Ninguém nos chama. Ninguém nos ensina.
Ninguém nos faz chorar.

Categorias
Dor

Sou o último herdeiro

Sou o último herdeiro
De herança que ninguém quer
E é por isso que um filho meu
Jamais conceberá nenhuma mulher.

Levo nos ossos a desdita
Do vicioso círculo do samsara
Essa roda cruel e maldita
Que esmaga corpos e jamais pára.

Levo nos ossos a desdita
Do vicioso círculo do samsara
Tem piedade, meu deus, e livra
Teus filhos dessa corrente que nos é cara.

Se tivesse a opção
Que escolheria?
Da liberdade a benção
De não repetir-me mais um único dia.

Dorme entre os lençóis da Eternidade
Ó criança concebida longe daqui
Nunca acorde para a realidade
Desprovida da lança que te pedi.

Pois se acordares e me incitares para a guerra
Desarmado com certeza vou cair.
Pois se abrires a caixa que o lamento da minh’alma encerra
Nunca, nunca mais vais conseguir dormir.

Categorias
Dor

O baixar da fronte diante do mar (O possuir do horizonte ao se contemplar)

Mares observo da praia
E ao longe vai o pensamento fortuito
Levado pelas ondas marinhas com o intuito
De seguir o meu querer que diz: “Se esvaia.”

As distâncias que separam
Do longínquo horizonte
Agora não me amparam
E baixo a cerviz, baixo a fronte.

O contemplar do mundo distante,
Bem para lá, esquecido e ocultado,
Forja o sentir do nada causticante
Eternamente por nós arquitetado.

Viaja para o longe…
Que procura olhar meu que sente
As agruras do lacrimejar?

Seriam esculturas a se contemplar?
Seriam pinturas para se apagar?
Seriam loucuras para se delirar?

Ou simplesmente pôr-do-sol
Para o qual se fica a divagar?
Ou puramente amor no atol
Esquecido pelas rocas que o destino antes ficava a usar?

Ah Parcas. Tão parcas e tão Parcas.
São só três
E os fios que cozem e torcem e rompem na nossa tez
Constituem todo o bordado
Que equaciona o aspirado
E faz enclausurado
Quando ruge no telhado
A maresia da imensidão.

De tantos horizontes
Quantos e tantos mais
Deixaremos nos estuprar aos montes
Na praia ou no cais
Buscando na paz
O que a guerra não trouxe?
Buscando no apraz
O que a terra não ouve?

Então para que destilar
Desse mar e desse horizonte
A aguardente do bar
Ou o baixar da fronte?

Categorias
Dor

Bipartido e bipartido

Bipartido e bipartido
Com que arte
Minh’alma se reparte.

E cada pedaço,
Do caminho o cansaço,
No caminho me refaço.

Mas mal trago de volta um pedaço de mim,
Outro se revolta, se desfaz assim…
Como poeira atirada ao vento.

Como pedras que se desempedram a contento.

Coesão!
Eis uma virtude quase beatífica!
Mas minha constituição nada pontífica
Cai em desconexão.

Rolam e rolam de mim os pedaços
Vítimas dessa lepra espiritual.
Caem estando no da amada o regaço
E caem na solidão sepulcral.

E não há doutrina!
Não há credo!
  Não há força!
   Que possa me reconstituir!

Já sou a separação encarnada
Que descarnada…
…Nem essa idéia irá persistir.

E as virtudes e os horrores
Assim à metade espalhados pelos campos do mundo
Hão de fecundá-lo
Mas não produzirão nada além de entulho.

Categorias
Dor

As lágrimas do inverno se foram

As lágrimas do inverno se foram
E de longe te fazem relembrar
Elas te chamam ao claustro
E no claustro te põem a exorcizar

Demônios culminaram a encosta
Da sombra do teu coração
E se soprando ao léu se faz a memória
Esses novos ventos vêm e vão

A obra inacabada e insípida
O objetivo traçado e não cumprido
A miséria da tua máscara iníqua
No claustro te põem despido

O chicote é o sibilo no espaço
E o sangue é a poça no chão
O rio é o que marca o teu cansaço
Nas costas da tua imaginação

A ferida te obriga a continuar
Buscando sem fim uma cura
Mas longa é a caminhada
E pouco é o sangue que perdura

Teus olhos atirados ao sol
Tuas mãos plantadas na areia
O círculo se completa e com mão de ferro
Sua alma se incendeia

Expurguei os teus pecados
E te chamei pelo caminho
Mas na sombra do primaveril vale
Me deixaste sozinho

O sonho te oculta a nódoa
Mas você segue a trilha do cão
No dono procura repouso
No dono procura perdão

Teus sentimentos já são tão poucos
Que se perdem em meio ao ar
E quando a tristeza foi tamanha
Você não quis acreditar

O inverno ao longe vai
E tuas lágrimas agora são cristais
Outra estação trará um novo tempo
Um tempo novo para novos ais