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A carne arremessada sobre o leito

A carne arremessada sobre o leito.
Olhos fixos no nada
Enquanto as veias quase secas
Empurram coágulos pelas suas galerias.

O desejo do fim da dor
Se confunde com o desejo da morte
E do descanso eterno
Enquanto os órgãos lutam para trabalhar.

Tanta vida e tão pouca vontade!
O moribundo jaz sobre o leito.
Sua vida se irmana com sua morte:
A busca do fim da dor.

A doença, depositada na alma,
Estende suas garras sobre o coração
E tapeado pelas imagens do sono
Não notou o seu avanço.

Mas ele ainda pode ter os olhos fixos no espaço
E cego vislumbrar as imagens que o enganaram.

Fama, Fortuna, Glória e Clamor,
Belas mulheres em langor,
Vírus da sua ilusão,
Súcubo do pensamento.

E sessenta e cinco anos foram necessários
Para se levar o moribundo do nada ao nada.

Sessenta e cinco anos de doenças e pequenos incômodos,
De trabalhos e feridas,
De estudos e desalentos,
De humilhações e sofrimentos,
De bebedeiras e afagos,
De traições e paixão doentia,
De desencanto e tédio,
De apodrecimento e falha,
De ascensão e glória,
De esforço e preocupação,
De desespero e dúvida.

Sessenta e cinco anos de crime, castigo e aspiração,
De auto flagelação e sonho,
De sonhar e cair,
De cair e se levantar,
De levantar-se e se apoiar nos espinhos,
De perfurar-se e cicatrizar,
De cicatrizar e adoecer,
De adoecer e se curar,
De curar-se e morrer,
De morrer e morrer de novo

Todos os dias até o pó.

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O silêncio que infecta

O silêncio que infecta
A máquina abjeta
Que concreta
Proporcionou ao sentir humano
O contemplar de um oceano de sentimentos manufaturados!

O silêncio que infecta o mundo!

A máquina se cala
E resvala a multidão pelos cantos!

A máquina se silencia
Com o silêncio que infecta o mundo!

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Na vermelhidão dos teus olhos azuis

Na vermelhidão dos teus olhos azuis
Vi o enfado dos teus dias:
Correr, correr, em busca de um pôr-do-sol
Em que as horas não sejam marcadas pelo martelo e sua batida fria

A labuta se descreve no contorno dos teus calos
E tua história se vê esculpida nas cicatrizes da mão.
Tua disputa, tão breve, e teu doloroso desmaio
Fugirá da memória pervertida dos matizes do chão.

A terra te é um campo de sofrimento
E tudo o que se ergue sobre ela, ela destrói.
Teus olhos em busca do alento no firmamento
Encontram apenas o sol que na luz tua retina corrói.

Tua força que retira da tua obra
Nela volta a depositar,
E teu esforço sempre retorna
Aonde antes veio brotar.

Contar teus dias seria estupidez
Pois comparados pareceriam um só,
E nem os momentos de torpe cupidez
Te salvariam de retornar ao pó.

Mas muitas são as virtudes e os dissabores do lobo:

Na solidão da noite
Onde seu inferno se lança
Uiva pro céu
Despido de esperança.

Corre pela savana
Em busca da fonte e do rio.
Sua força vem da caça
Mas seu espírito do desafio:

De continuar mais um dia sobre a terra,
Carregar o inferno para além do vazio.

E lembrar no dia em que a morte se acerca
De depositar nos ossos toda a dor e todo o frio

Para que no mundo do espírito não tenha na certa
O olhar do moribundo e o pensamento vazio.

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O Túmulo do Desconhecido

Eu queria ter lido teu nome no epitáfio,
Mas a ruína já apagou os escritos do teu túmulo
E nem o tato da palma da mão foi capaz
De sentir os sulcos que nomeavam a tua vida fulgaz.

E mesmo com as glórias de um batismo pagão ou santo
Seu nome, como qualquer outro,
Não resistiu para soprar palavras sem significado
À este futuro aos teus olhos ocultado.

E por forte, ou vivaz, ou estúpido, ou prepotente, ou caridoso
Que tenha sido o seu vôo
Foste abatido como qualquer um
E lançado ao chão distante do azul.

E por mais que tenha escrito
Ou edificado;
Apagado, animado
Ou pervertido,

Não sobrou marca alguma que indique
Como você era chamado ou conhecido.
Não há nada que explique
O porque do túmulo aqui erguido.